sexta-feira, 9 de março de 2007

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a agulha e o breu

Peter sentou-se e esperava. A luz se recolhia pra quase não iluminar nem um, nem outro, neste quarto-em-madeira. Sons secos estalavam do assoalho vez por outra em contraponto ao ritmo preciso e compassado da agulha que guiada por mão feminina, seguia seu ritual. A menina, instrumento em punho, espalhava seu longo vestido azul pela cama e costurava feliz. o negro no negro. Num quarto em semi-breu, como se costura de forma concisa o negro no negro?

Peter olhava e singelo, sorria. Bem, se é q conseguia enxergar alguma coisa… mas não era preciso ver, afinal o ritual começara ainda regado pelos sons do lusco-fusco e as cigarras, lá de fora, benziam com seus gritos serrilhados o ato paciente de cozer sombra com sombra, ali dentro daquela casa.


Era quase dia e o trabalho estava pronto. A sombra de Peter era a sombra de Wendy q era a sombra de Peter. Por toda a noite, foi o amor quem guiou as mãos cegas da menina do vestido azul. O breu que, naquela madrugada, embebia a cera derretida da vela ao lado da cama, terminou de costurar as sombras de ambos em uma unicidade ímpar, qdo Peter por instantes deixou de ser criança e Wendy já não mais a menina do vasto vestido de seda azul.






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por mares nunca d'antes

Na imensidão do oceano mais vasto
uma garrafa vaga levada ao azar.

Na imensidão de uma mente vaga,
bóia uma vontade estacionada na areia.

Sentado, ele espera. Olhar fixo no mar.
ouvido fixo no som estridente das gaivotas,
contraponto esganiçado ao marulho intermitente.

A garrafa tem alguém dentro.

Talvez ela nunca chegue ali. Ou em qquer outra praia.

Talvez o mar seja caprichoso e leve-a cuidadosamente
ao destino à qual fora endereçada, quando jogada ao mar.

Um pedaço de plástico arranha a areia molhada, aos pés do homem q espera.

Plásticos azuis e sem graça são mais comuns de aportar por ali…

O rótulo da garrafa ainda não se descolou,
e a menina lá dentro não parece cansada com a viagem. nem ansiosa nem nada.

Os peixes que por ela passam podem ler ali : platônico.








Poesia inspirada na garrafa de Tarlei.

quinta-feira, 8 de março de 2007

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VENTRILHAR

Na ilha de Lia,
num barco de Rosa,
nas ondas de Chico.

Entre na ilha esguia de Lia,
das nuvens, do vento,
e um breve lamento irá escutar.

Penetrando sua bílis, que
lê o anúncio das vozes
festivas, roucas, amarelas,
sequëlas daquilo que se chamou lar.

E a trilha que deixa o barco de Rosa
formosa, carinho, na ilha de Lia,
perdia o conceito, pudores, preceitos;
perdera seu mar.

Lia perdera seus sonhos antigos,
seus falsos amigos,
e num estalo de alegria avista o barco de Rosa,
seus rastros, seus sulcos,
e corre pra lá.

Só. (...) Nem. (...)

No ventre de Lia, fermentam estrias.
Seu lar, sem magia.
Aberto à qualquer sorte,
fica Lia lá,
sentada, lá,
o tempo, lado a lado,
parado, um detalhe – um instante
incomensurável, distante de um amanhã seguro.

Se a areia, farinha;
se a folha da palmeira, seu teto;
ao menos o vento entra sorrindo,
sonhando, faceiro, na esguia ilha de Lia.

De um lado ao outro de espaço nenhum,
distância do mundo, Lia segue vagando,
ventrilhando esperanças
em um lugar comum...


quarta-feira, 7 de março de 2007

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Noites e manhãs

Numa colcha de lã colorida,
Esticada em seus fios sem fim,
Notava-se acesa uma vontade ímpar,
Acesa ; timidez.

... e enquanto o trançado a envolvia,
já seus olhos, cerrados,
percebia estanque uma harmonia par,
quadrada, tranquila.
cobri-la de cores, calores;
envolver num abraço de sentimentos sinceros,
vermelhos, amarelos, azuis;
envolver num abraço feliz.

E nisso desce a noite,
fria e negra.

Irrigando o tempo, que segue sorrindo,
Renascem as estrelas caídas do céu.
Enfeitam seu sono, permeiam a colcha, e
Na pressa da volta te deixam seu brilho.
Estrelas cintilam na íris da alma desperta d’Irene;

Serena;

Manhã.

terça-feira, 6 de março de 2007

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Fábula-em-gotas


De noite, me entoco no fundo do mar.

A noite ali é escura igual…

… e as marés jogam comigo:
me balançam, me empurram,
meu corpo deixa sem resistir.

Uma cigana me falou um dia que
o meu amor mora no fundo do mar.
E que algas a adornam.

O mar foi feito de pingos, disse ela.
O mar foi feito de gotas.
Aconteceu quando o Homem, solitário,
andava pela terra árida, seca, amarelada…
foi quando o Homem descobriu que seu coração não era duro.
(foi antes da serpente e da maçã).
Não era duro como as pedras, não era duro como o chão,
q já ali se rebentava-caatinga. Ser-tão só.

E o homem sentiu que tinha espaço no coração sobrando.
A espera de algo q não sabia o que era fez com que ele se sentasse.
O homem sentou e lacrimejou. Sem som nem ruídos.

O penhasco via as gotas caindo. Se depositavam no fundo e se amontoavam.

As gotas viraram poças. E caiam mais.
As poças viravam lagos. E caiam mais.
Os lagos transbordavam gotas. E caiam mais.

O Homem se levantou e ainda lacrimejando se atirou ao mar que veio de si.
Nadava por entre as gotas, gotas e ar. Procurava brilho nelas.
Procurar o que por certo ainda não sabia. Procurar seu grande amor.

A lenda me veio com tanta verdade, que desde então eu faço o mesmo.
Todas as noites serpenteio pelo mar.
Tem 24 dias, desde 20 de outubro, que me deparei com uma gotinha.
Especial, sabe? Não vi brilho nela, assim, aparente.
Mas era o meu coração que chamuscava,ardia, embebido ali.
Logo logo entendi: o brilho era de alma.

sem cor.


Era de amor.



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s. título (2006) 10x15 cm.

Há mais espaço entre os espinhos negros de um ouriço
do que na selva de pedra em que resido.
Resisto. Podre.


A luz do sol se prega ao parapeito por duas horas, a cada dia nesta época do ano.


como consegue fugir das sombras vorazes, ainda não sei.
mas foge. Dribla.

E todo dia invade o quarto.

Tentáculo Solar.



[ Qual é o teor de ameaça que o som do Sol, avançando, nos traz? ]



Entra de lado, sem pedir licença.

É como se a régua de luz e calor se dilatassse devagar. zinho.

E todo dia ela te raspa. raspa de mim um fio de sua existência. Deixo. Afinal, o processo se repete aqui dentro. Você, do lado da minha cama, cama espaçosa num quarto-cubículo que engole chá de imensidão toda vez que deito e não te sinto. Na mesinha de cabeceira você sorri pra mim, escrita por luz, 10x15 sorrindo. Mas todo dia o sol conquista território adentro. Avança. Mais. Do parapeito, mergulha em brasa no chão-poeira do quarto. Avança. Escala a mesinha de cabeceira e no cume o porta-retratos espera, impávido colosso: pequeno e fino em volume, imenso universo abstrato de recordações embutidas. Mas a certeza de vitória que acomete o braço de sol – passo a passo se aproxima lentamente – faz com que ele não tenha pressa. Não é preciso engolir o tempo, então apenas se delicia com a sua passagem e se estica estica até o ponto final, pra começar daí o regresso diário. O sol no meu quarto é amostra grátis, singular e lerda de um movimento em Adagio das ondas do mar, que pincelam a areia pra cima e depois de volta pra baixo. Uma única-horas vez por dia.


E assim, a cada crua rodada do relógio em que o sol te drena,

a foto sua desbota em cor;

sua presença desbota em vida.